domingo, 9 de maio de 2010
Desencanto
Juliana, agachada, pegava uma a uma as peças do seu vestido de noiva espalhadas pelo chão, enquanto pensava em voz alta - era costume antigo falar com o vento - que motivos teria Julián para sumir assim na última manhã juntos, ela que havia deixado o marido na porta do hotel, gastava o seu tempo em Julián, mal sabia que teria que inventar uma boa desculpa horas depois. Julián não queria a partida, despedir-se era um preço que ele não podia pagar. Tantas coisas havia perdido e ainda lhe escapava a lógica da vida, vê-la por última vez era borrar a sua presença para sempre, era inevitavelmente emoldurar o seu amor naquela imagem manchada do vermelho dos cabelos de Juliana. Julián não queria carregar um quadro nas mãos. Fugiu, como ela, para estar sozinho, sem as horas do tempo. Abriu os olhos na noite anterior, antes que ela pegasse no sono, e não os fechou mais, saiu ainda cedo, deixou suas marcas de cheiro de café, e água de chuveiro, tomou de assalto a bicicleta de Juliana, esqueceu-se do trabalho, da maturidade, do marido traído, e saiu como criança sorrateira, fugiu até a esquina, pedalando meio sem jeito, com as suas pernas torpes, deixava a casa e a vida para trás. Juliana queria congelar o tempo, carregar na memória a imagem de um amor desencantado, sem as certezas de uma vida, ela queria dar um lugar para esse amor escondido, para esse amor mais humano que o seu vestido de noiva. Era moça de guardar foto, lembrança e até rancor e ódio. Julián era mais misturado à terra. Ela menos. Foi seguindo as suas pegadas molhadas que ela chegou ao cheiro de café da cozinha e à porta aberta da garagem. Vestiu-se, como era de se supor, com o seu vestido de noiva - Juliana não era nada prática, esquecia-se sempre que o dia vem depois da noite. Sem a bicicleta não pôde mais que esperar. Julián estava ali, cansado da fuga voltou sem demora carregando a bicicleta nos braços com tanto zelo, prostrada num semblante de morte, aproximou-a de Juliana, ruiva como lhe atiçava os sentidos, e entregou o brinquedo arrependido do furto. "Fica mais um dia", pediu como quem perde um abraço, "não posso", Juliana olhava bem nos seus olhos, não queria perder nenhum detalhe do seu rosto de homem maduro, Julián achou normal o vestido de noiva, não disse nada, afastou-se devagar, olhou hesitante uma última vez os cabelos ruivos, não quis tocar nada, não era um quadro que ele queria, era a beleza de estar ali, não estava mais, voltou o corpo e como estava perto da casa, entrou logo fechando a porta rapidamente. A Juliana não lhe restava mais que reviver aquele ser sem vida deixado em seus braços, pedalar, e pensar numa boa desculpa.
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Um comentário:
O autor está de volta... hum!
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