domingo, 30 de maio de 2010

Seus olhos furtivos

É calado que eu espero, incondicionalmente, qualquer eco de presença sua, e vou criando em mim, com a destreza de minhas mãos em teu corpo, todo o nuance da luz do seu sorriso, em minha rua, em meus livros, em saber-me incapaz de reproduzir você por inteiro, e nesse desespero sigo desmanchando os sorrisos incautos fazendo-me cócegas, arremedos infiéis da candura tua, quisera saber por onde começar a apagar essa luz, conformar-me com o meu claro-escuro aparecendo diante de meus pés caminhando, saber-me cada vez mais submerso nessa claridade coloca-me outra vez à deriva, louco, imaginando platônicamente meu gozo nas pequenas partes desse encontro furtivo de nossos olhos, você sempre tão linda, desvio os olhos com as mãos relutantes, há tantas coisas rondando minha cabeça, e meu corpo à espera da sua luz, ilumina, faz viver com a sua malícia de menina o meu olhar cauto sobre seus gestos, traz de volta o prazer pro meu quarto escuro, desenha pouco a pouco, brinca de ser minha, me dá algo para tocar, me alivia da falta que me faz, vem de novo ser parte do meu mundo, sorria apenas, me conformo, seu sorriso é quase um mundo, caminha devagar, entrelaça as suas pernas eternas em mim, é com pouco que eu me farto, já não quero muitos pedaços de sombras, prefiro a brisa que você deixa passar, me abraça brisa, fugaz, que é com o desejo de ver-te aqui, a cinco centímetros dos meus olhos, que eu me apanho por completo, e vejo cada parte sua como um perfume, e me transformo, de vez, em amante infindável e deslumbrado de você.

domingo, 9 de maio de 2010

Desencanto

Juliana, agachada, pegava uma a uma as peças do seu vestido de noiva espalhadas pelo chão, enquanto pensava em voz alta - era costume antigo falar com o vento - que motivos teria Julián para sumir assim na última manhã juntos, ela que havia deixado o marido na porta do hotel, gastava o seu tempo em Julián, mal sabia que teria que inventar uma boa desculpa horas depois. Julián não queria a partida, despedir-se era um preço que ele não podia pagar. Tantas coisas havia perdido e ainda lhe escapava a lógica da vida, vê-la por última vez era borrar a sua presença para sempre, era inevitavelmente emoldurar o seu amor naquela imagem manchada do vermelho dos cabelos de Juliana. Julián não queria carregar um quadro nas mãos. Fugiu, como ela, para estar sozinho, sem as horas do tempo. Abriu os olhos na noite anterior, antes que ela pegasse no sono, e não os fechou mais, saiu ainda cedo, deixou suas marcas de cheiro de café, e água de chuveiro, tomou de assalto a bicicleta de Juliana, esqueceu-se do trabalho, da maturidade, do marido traído, e saiu como criança sorrateira, fugiu até a esquina, pedalando meio sem jeito, com as suas pernas torpes, deixava a casa e a vida para trás. Juliana queria congelar o tempo, carregar na memória a imagem de um amor desencantado, sem as certezas de uma vida, ela queria dar um lugar para esse amor escondido, para esse amor mais humano que o seu vestido de noiva. Era moça de guardar foto, lembrança e até rancor e ódio. Julián era mais misturado à terra. Ela menos. Foi seguindo as suas pegadas molhadas que ela chegou ao cheiro de café da cozinha e à porta aberta da garagem. Vestiu-se, como era de se supor, com o seu vestido de noiva - Juliana não era nada prática, esquecia-se sempre que o dia vem depois da noite. Sem a bicicleta não pôde mais que esperar. Julián estava ali, cansado da fuga voltou sem demora carregando a bicicleta nos braços com tanto zelo, prostrada num semblante de morte, aproximou-a de Juliana, ruiva como lhe atiçava os sentidos, e entregou o brinquedo arrependido do furto. "Fica mais um dia", pediu como quem perde um abraço, "não posso", Juliana olhava bem nos seus olhos, não queria perder nenhum detalhe do seu rosto de homem maduro, Julián achou normal o vestido de noiva, não disse nada, afastou-se devagar, olhou hesitante uma última vez os cabelos ruivos, não quis tocar nada, não era um quadro que ele queria, era a beleza de estar ali, não estava mais, voltou o corpo e como estava perto da casa, entrou logo fechando a porta rapidamente. A Juliana não lhe restava mais que reviver aquele ser sem vida deixado em seus braços, pedalar, e pensar numa boa desculpa.