terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Fernando Rodríguez

Fernando Rodríguez nasceu na imensa pampa uruguaia no ano de mil novecentos e dois. Filho de imigrantes logo reconheceu na terra úmida o que um dia mais tarde sempre foi seu. Corria campos com tornozelos livres de quase voar. Dizia que o chão era o seu mais longínquo céu, sendo tão inalcançável a união entre a terra e o azul do horizonte pampeiro. Gostava desde menino de sentir a realidade das coisas com os próprios e inexperientes sentidos, exigindo experimentar. Explorava cada pequena coisa com tamanha minúcia que Fernando Rodríguez e coisa mundana não eram mais que um só suspiro de existência.
Agarrado às coisas do seu mundo, Fernando Rodríguez aprendeu a deixar o mundo falar. Não perdia um único entardecer ocidental, refletindo o vento livremente naqueles campos de um verde pálido. Escutava, sem demoras, bater nas margens o som do rio, pequeno naquela época e incessante como os seus pastos cotidianos. Gostava muito de caçar bicho, pegá-los nas mãos, sentir o cheiro azedo do vaga-lume, do mato, da chuva rio-platense.
Criado sem irmãos, Fernando Rodríguez sempre gostou de ser sozinho no seu mundo. Era nas silhuetas de mundo que ele gostava de conversar, com os seus sentidos reinventados na terra que lhe escorria pelo corpo. Fernando Rodríguez era feliz. Só teve um único medo, paradoxo da sua condição excitante de vida, o medo da dor, física. Por sorte, nunca teve arranhão, machucado, perna quebrada, sarampo, catapora e nunca sofreu de dor de pele nem de cotovelo. Quem sabe no não saber, morava o medo, claro, sem conhecer a razão humana da dor em si mesma, no seu mais sensível existir, Fernando Rodríguez comparava o prazer e temia a dor.
Aos quinze anos apaixonado pela musica, foi sem reservas à escola de musica de Buenos Aires. Escolheu a flauta transversal, não pela herança européia, mas pela pampeira, tanto tempo treinado na arte do vento soprando na pele e na boca, foi. Ali aprendeu outra vez as coisas do seu novo e mesmo mundo de sempre. Foi nessa época que Fernando Rodríguez aprendeu com mais esmero a olhar e a sentir as pequenezas das coisas, cinza era a cidade e poucas margens ruidosas de seu conhecido som mareado, foi obrigado a procurar entre as frestas o seu sempre pedaço de pampa.
Passaram os anos e ele então, cada vez mais dentro da terra, aprendeu musica, viveu entardeceres, passando pela vida à margem do não apreensível, da ilusão urbana de realidade. Criou para si, o mesmo mundo criado a principio para todos nós, com terras, cores, cheiros, luz e gosto de chão.
No entanto, Fernando Rodríguez é, e sempre foi feito da mesma matéria etérea que o apaixona. Em 1988, já quase não sopra a sua música, já quase não ouve os seus ventos, já quase não vê a sua luz ocidental de toda tarde. Fernando Rodríguez envelheceu demais, e feliz. Aprendeu, como ninguém, a matéria de que é feita o mundo. Como ninguém ele mergulhou ali com tanto prazer e curiosidade que não sentir era não ser, e Fernando Rodríguez foi mais que todos no mundo, foi mundo. Sua velhice trouxe mais minúcias. Vive hoje em seu apartamento no décimo andar com seu peixe e suas flores. É dono de uma floricultura. Todos os dias desce até a calçada da frente, caminha com dificuldade e cuida das suas plantas com o mesmo entusiasmo infantil com que corria campos sentindo a terra descalça como ele.
Aos 86 anos, feliz de toda a vida, é violentamente acometido pelo mal do seu século, sem aviso, sem experimentar uma vez que fosse a dor, Fernando Rodríguez está assustado, mas sem medos, é um homem vivido e sabe que voltará ao mesmo chão comprido e eterno de onde veio. Fernando Rodríguez não quer morrer, mas precisa.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Inevitavelmente

Pois é...ela foi saindo da minha vida. Saiu. Mas o seu rosto ainda permanece aqui bem perto dos meus olhos, tão perto, quase dentro de mim. E eu que disse que queria ela assim, que queria ver cada parte do seu rosto tão perto que mim, misturadas comigo mesmo, aqui nesse ponto de vista irreal da sua pele tocando levemente meu desejo de eternidade, e eu que disse tanta sinceridade, deixei ela ir, fui. E você me diz que quem sabe, na melhor das hipóteses, nesse mundo grande de devaneios, idas nunca vindas, eu queria, sem saber se quero, estar, seguir ali naquele lugar ainda aqui, tão perto do seu rosto sorrindo, você diz que eu deveria ignorar a terra ocre, deixar voar minha carne a lugares imaginários, dizer do seu destino, fazer-me parte de algo que não sei, confuso, cair de cara no fim do mundo sem o toque leve de todas as partes do seu rosto. Não me subestime, não diga o que eu sempre sei. Ela vale mais do que o meu desejo, ela é mais que a minha vida de agora, deixa ela ir, deixa doer, estou tentando, estou deixando, estou indo. Pois é...eu vou, sem querer ir, pra onde ela está, inevitavelmente, pra dentro de mim.