sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Não ser

Respirou fundo, buscou no chão a resposta daquilo - se não sabia a pergunta. Procurando algo entre as pedras pisadas, deu volta no corpo, olhou distraidamente fingindo seriedade, tateou a luz daquela tarde inútil misturada aos seus pés empoeirados. Tentou ainda voltar, arrastou-se um pouco com o peso de suas vidas passadas, "não dá mais", sentenciou, levantou com esforço os olhos vencidos e pode ver ainda, minimamente, que as sombras daquele caminhar coletivo, às seis da tarde, deixavam marcas tênues clamando-lhe existência, suplicando-lhe, na sua loucura, uma voz clara, um caminhar reto diferente daquela aberração do fim do dia. Foi isso que pensou, pobre. Estava longe e tão perto de casa que as coisas se confundiam. Saiu entrando na casa de sempre. "Não me conhece, ela não me conhece". Com cuidado tirou a mochila num solavanco, deixou-a num canto da casa, aquela mochila que me conhecia mais que qualquer um ali, ia agora ser espectadora da minha derrota, da falência inevitável do meu corpo em farelos, o estranho, ela deve ter pensado , é que ele se deixava vencer sem remorços, não dizia nada, sequer um grunhido malferido, eu já era outro morto privado da solene morte em passeata. Esperei com receio o abraço e o choro frio, o meu nascimento ao contrário, era agora a mãe, a exemplo da cria, que chorava exasperada a volta ao ventre. Estranha condição a minha naquele dia já visto, era só pisar firme naquela casa sem luz, era só sentir o abraço sufocante, desviar os olhos da rua e deixar de ser. Estranho. Não me reconheço. Volto ao cocho ao revés, sem fome, sem sede. Já estou saciado. Deixei lá fora, às seias da tarde, as minhas marcas tênues. Desatei-me com cuidado daqueles braços, tentei exitante enxugar a água daqueles olhos, olhei de novo pro chão, buscando dessa vez a pergunta, tateei fingindo comoção e gritei sem freios desesperadamente, "já não sou", chorando em silêncio.

3 comentários:

Anônimo disse...

o exemplo perfeito, de um minuto que dura pelo infinito.

Zoi di Gato disse...

Se for possível, sem pressionar a inspiração que brota dos pampas, gostaria de ver mais textos, com maior regularidade...

Índigo disse...

um absurdo de lindo! gostei do título do blog ao último ponto.