Eu poderia viver aí, calado, num canto qualquer da sua boca.
Poderia viver no silêncio da sua voz, recriando surdamente seu incansável sotaque infantil. Poderia viver sem o gosto digerido da tua língua e do nosso sexo, viver no toque imperceptível de seu cabelo em minha boca, ou viver ainda na sua carícia descuidada.
Nos seus olhos fechados não posso! Não posso sem essa espera a que os meus se acostumem à penumbra grossa do nosso quarto, a fim de ver lentamente, apalpando quase, suas costas avermelhadas, suas muitas marcas de inocência.
Não posso sem essa pouca luz, sem esse movimento involuntário do meu rosto em seu corpo ou seria do seu corpo em mim, tão pouca luz há sempre aqui entre nós, nesse quarto noturno, você sempre com os olhos fechados, não posso sem seguir buscando nessas suas pequenas imperfeiçoes o sentido pálido do meu amor platônico.
Não era a pouca luz, o que me calava ali, eram os meus olhos que mudavam, ou aquele rosto infantil que clareava pouco a pouco o meu quarto cinza.
Era o detalhe da sua boca e o seu olhar distraído que não se fixava em nada, apenas, e apesar de tudo, em meus olhos, ou na sua própria imagem que via duas vezes em mim, pequena e redonda, tão perto estava de meu rosto que era como olhar-se a sí mesma, sentir a própria respiração na pele.
Abria seus olhos ao máximo, e ali me enxergava a mim e àquele tom amarelado, vindo talvez de seus olhos fechados, iluminando seu rosto quase por inteiro, e à sua pele, salpicada de um vermelho claro, como o outono seco la fora.
E logo o meu rosto refletido olhando a mim e a ela simultaneamente, confundido na largueza daquele momento, daquele piscar de cílios que me distraíam e me traziam de novo ao meu quarto, à minha janela branca, ao meu egoísmo de sempre, ao meu silêncio.
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