Vi, quando passou por mim, que dessa vez não olhava pro chão, como fazia sempre. Hoje, seus olhos caminhavam sem desviar do traçado reto que já tinha criado na noite anterior. Tinha na cara esse ar raro da certeza de algo, ou, nesse caso, esse ar asfixiante do desejo, seguro estava de encontrar o que tinha ido buscar. Era claro que ele queria viver nesse instante todo o seu resto de vida. Passou por mim ser ver-me, e eu por fim o vi por primeira vez, a meu irmão, a mim espelhado naquele quase homem ainda imaturo, virgem de todos os sexos.
Era já o dia seguinte quando cheguei e imaginei toda a cena, nesse dia já tinha caído outra vez, e seus olhos já se arrastavam uma vez mais. Ele seguia caminhando diante de mim que não estava ali. Caminhou até a porta do pátio, minha casa era pequena, e entrava muita luz pela janela, talvez foi por isso, pela luz, nunca se sabe bem essas coisas, não se conhece a vontade dos outros. Estava um pouco aberta a torneira, lembro que aquele gotejar me incomodava bastante, cada gota era uma noite perdida, uma depois da outra caíam em sincronia, guiavam seus pés num ritmo determinado. Depois não se escutava mais, já não se escutava nada, era um silêncio pesado. Eu via que ele seguia parado, desenhando com as mãos sobre o céu, apontando algo. Pintava sempre coisas amenas, trabalhadas aos poucos, dessa vez já tinha pintado o quadro, na noite anterior, já tinha pintado tudo, a luz da janela, seus olhos fixos, o ar denso. Esse irmão eu não conhecia até aquele momento. O estranho é que no mesmo instante - saberia de tudo depois - eu também olhava o céu, sem muito interesse, e foi aí que atendi o telefone, aturdida por vê-lo com vida, minha mãe me descrevia a mesma cena que acabei de presenciar, um dia depois. Continuava parado ali, imóvil com o quadro já pintado. O que aconteceu depois não se pode descrever. Havia, lembro, muita luz. Era tudo branco. Já quase não via nada. Caminhei um pouco, queria ver melhor. Nada. Estava cego pela luz. Era essa luz grossa, sufocante. Tentei tapar com as mãos a cara, era impalpável tudo, como um sonho relembrado. Mas tinha certeza, eu estava ali. Foi quando tentei tocar-lhe, entender que era toda aquela luz, por que não lhe fazia mal? Depois, no outro dia, quando cheguei a casa, vi bem tudo, ele estendia o braço, agarrava algo, em meio a toda aquela cegueira conseguia ver outra presença ali, imaginada na noite anterior, desenhada. Baixou o braço, os olhos e já pude ver sem dificuldade que entrava uma vez mais encurvado, arrastado e por fim me via chegar, entrando pela porta sem vê-lo, como sempre fazia.